Arquivo pessoal de Babá Couto
Dizem que o uirapuru é a ave que
tem o canto mais belo entre todos os pássaros. Uma lenda conta que os outros
passarinhos se calam quando o maestro da floresta resolve soltar o gogó. O papo
é de gente entendida, os chamados ornitólogos. Porém, os corações apaixonados
proclamam em poemas a cantoria dos canários, a melodia das graúnas, o assobio
dos curiós. Outros vão e voltam como as andorinhas, que sempre encontram um
pouso para cantarolar no fim das tardes. Poesia de uirapuru, supõe-se, não tem
fama na literatura, porque sucesso nas paradas é o sabiá, que foi coroado como
majestade. E isso ninguém pode negar. Muito menos a Babá Couto, que já perdeu
as contas de quantas vezes teve que atender a pedidos e entoar a canção de
Roberta Miranda nos bailes da vida.
Quem
conhece a Babá já puxou a lembrança pela memória. Quem ainda não teve o
privilégio de ouvi-la cantando, pode fechar os olhos e imaginar. A referência é
a suavidade, a doçura, a delicadeza. O assobiar de um pássaro capaz de soltar a
voz em uma apresentação exclusiva ou ave solidária que sabe dividir o microfone
com outras vozes, para que todo o coral possa fazer sucesso. Nos cânticos
sacros ou nas mais famosas da música popular tupiniquim. Ela tem amplo
repertório que se encaixa em seu tão belo dom. Habilidade tão especial que a
apelidaram por causa da semelhança física com a cantora famosa, a compositora
d’A Majestade, o Sabiá. E Babá nem precisa fazer cover da Roberta, mas tem
gente que se confunde quando cruza os olhos com ela na rua.
Certa
vez, depois do feriado de 7 de Setembro, véspera da saída do pagamento, data
que mudou o tal aguardado quinto dia útil, a ansiedade era a companheira de
Babá desde o café da manhã. Naquela sexta-feira, não havia cantoria que a
animasse, pois precisava de atenção para acertar a matemática do cotidiano.
Essa conta não podia ser perdida. Afinal, os boletos aguardavam destino em cima
do aparador da sala. Pareciam irmãs serelepes querendo sair de casa para um
passeio. Copasa, Cemig e Telemig. Cada uma vestida com um preço diferente. Lá se
foi a historiadora, professora e cantora, desfilar a alegria na Praça da
Matriz. A tiracolo, as mocinhas que já estavam atrasadas por causa da
independência brasileira. Descendo a Rua Dr. José Gonçalves, os pensamentos
viajavam. O filme na cabeça retratava o passado. Tudo que sempre esteve
guardado no inconsciente parecia voltar à tona. Desejava ir para onde Deus
quisesse naquela caminhada em tempos de calor. Contudo, o destino era certo. O
banco a esperava.
No
caminho, na muvuca do ir e vir dos moradores de Bom Despacho, no zum zum zum dos
vendedores na porta das lojas, um mendigo abordava quem tivesse a bolsa maior.
Acostumado a criar frases de efeito para convencer a doação, ora pedia dez
centavos para ajudar na compra do leite das crianças ora implorava por qualquer
quantia que pudesse ser ofertada pelo senhor e senhora cidadão. Se alguém desse
corda até de maneira sutil, ele já soltava o bordão: pode ser cinco centavos ou
qualquer nota de um milhão, se você me der dez reais, fará feliz meu coração.
A
rima interrompeu o sentimento interno de Babá, que queria uma rede, um
lugarzinho que não fosse aquela confusão. Aquela voz, muda, de um pardal,
perdido, sem que ninguém notasse, foi cativante. Até engraçada para aquele
momento. Ela parou, esboçou um sorriso largo. O sujeito ficou abobalhado. Parou
infinitos segundos diante da imagem que via. Não estava acreditando que alguém
o olhasse nos olhos. E ele sabia que era alguém importante. Suspirou e emendou
a esmola: Dona Roberta Miranda pode me dar um tostão, mas o que eu quero mesmo
é ouvir da senhora uma canção.
A súplica
mudou de nome, transformou-se em homenagem. O pardal fazia sinfonia para o
sabiá. Babá chorou. Certamente, aquela curta viagem foi linda.
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