Ah, se eles falassem! Quantas
histórias seriam narradas, segredos saíram das bocas transformadas em túmulos,
aventuras virariam páginas extensas de livros. Pena que os fuscas não dialogam
no café da tarde, mas se resolvessem colocar as nossas vidas na mesa sobraria
gente gritando truco, em sinal de desaprovação e duvidando que tais fatos
ocorreram. Alívio para alguns que aprontaram no pequeno carro, nostalgia para
aqueles que guardam lembranças em que o fusquinha também foi personagem.
Antigamente, não havia o rigor
da Lei de Trânsito. Logo, sardinha não tinha inveja do amontoado de vários
passageiros que se espremiam em todos os cantos do veículo que foi projetado
para caber somente cinco, sendo que três sofriam com o aperto de pernas,
ombros, sacolas, tudo encaixado no banco de trás. No entanto, fusca era coração
de mãe. Havia colo para todos que se arriscavam na carona, seja para uma
noitada de serenatas, seja para passar o domingo comendo galinha caipira em
algum sítio. A turma se ajeitava num carro só e ninguém ficava de fora da
festa.
Lugar de criança era no
chiqueirinho, em cima do motor, o espaço mais apertado, mas o que provoca
inúmeras memórias. Os primos da mesma idade brincavam enquanto a viagem seguia
seu curso rumo às beiradas do rio que abastecia a cidade, que servia de lazer
para quem não tinha cota em clubes de piscinas. O calor intenso, o
empurra-empurra, o choro das brigas, o cheiro forte de paçoca de carne batida
no pilão, eram compensados quando chegava a hora do banho de cachoeira. Voltar
para casa era outra “munha”, como dizem os mineiros quando se referem a
confusão. Menino molhado, outro com sono, um mais animado – todos deviam ser
acomodados no pequeno bagageiro.
Atire a primeira pedra quem
nunca teve que ajudar um fusca a “pegar no tranco”, empurrando-o ladeira
abaixo, sentindo-se envergonhado, mesmo sabendo que a atitude era uma boa ação
com o dono do automóvel. Raro era quando isso não acontecia, pois parece que o
motor do bichinho foi feito para funcionar no impulso dos braços. A solidariedade era mais intensa do que o
constrangimento por causa dos olhares da torcida contrária que ficava
analisando as habilidades do motorista. Quantas vezes ficamos na estrada de
terra esperando resgate?
Se a Volkswagen não deu voz à
sua criação, quem sou eu para contar tudo que já vivi nas ladeiras abaixo,
dentro ou fora dos fuscas que conheci. Não posso revelar nomes, por causa dos
direitos autorais que não foram autorizados pelos protagonistas dos casos.
Entretanto, não custa liberar algumas linhas para abrandar o suspiro dos
curiosos.
Contaram-me que um fusca
amarelo, ainda na ativa, já teve mais de trinta chaves. A adolescente que sabia
dirigir também aprendeu a enganar os pais, proprietários do veículo. Enquanto
eles trabalhavam, ela passeava com os amigos utilizando as cópias feitas por um
chaveiro camarada. Pega em flagrante, devolvia uma chave, mas havia outras
guardadas secretamente.
Fiquei sabendo ainda que,
certa vez, nas proximidades das Olimpíadas, um fusca bege voou uns três metros
de altura de uma varanda até o quintal, porque a motorista engatou a primeira
ao invés da marcha ré. Disseram que ela estava treinando salto a distância para
participar dos jogos em busca de uma medalha. Nada de grave se sucedeu, afinal
carro e saltadora são duras na queda.
E os namoros debaixo da
goiabeira, que o poste sem lâmpada ajudava a dar sombra bem escura? As visitas
noturnas ao mirante? A fugidinha no horário do almoço para as bandas afastadas
da cidade? Histórias em que o desfecho aparece em nove meses...
Ainda bem que fusca só
conversa com o mecânico.
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