sexta-feira, 22 de maio de 2015

BEIJO DE PÊSSEGO


Numa época em que as conversas virtuais se tornaram comuns e as confissões íntimas caem na rede mundial de computadores sistematicamente, muita gente pode ter se esquecido do tempo em que dúvidas indiscretas eram reveladas nos cadernos de perguntas que circulavam nas brincadeiras infantis. Aparentemente inocente, o questionário desvendava segredos escondidos no coração de quem se atrevia a se expor naquelas linhas cheias de ousadias.

Os namoricos e os mexericos começavam a partir das respostas inesperadas que apareciam no caderno. Os amigos da escola, ou aqueles que cresceram numa rua dominada por crianças, ficavam sabendo das opiniões e desejos alheios por meio das conversas escritas no misterioso caderno. Afinal, ele não caía na mão de qualquer um. Quem contasse algo mais íntimo, porém, caía na boca dos outros, na metáfora e na literalidade. O resultado do conteúdo da lista era o beijo na boca ou ser o assunto do dia.

As perguntas eram bobinhas, mas revelavam a intenção real da troca de palavras. Em cada página um enigma ia surgindo e, pouco a pouco, já sabíamos quem estava gostando de quem. As primeiras questões serviam para a apresentação física: cor dos olhos, do cabelo, da pele. Depois, vinham as cobiças estéticas relacionadas à pessoa amada: “como é a menina (o menino) que você gosta?”; “ela (ele) mora na nossa rua ou estuda no Chiquinha Soares?”; “você já ficou com alguém que está citado na página anterior?”. Era muito emocionante ler as respostas e se enxergar nelas. No entanto, faço um lembrete para que não haja confusão a partir daqui: o “ficar” descrito anteriormente tem o significado de beijar na boca.                

E era essa intimidade que desejávamos no auge da puberdade. Beijar alguém era a comprovação da maturidade, na nossa ingênua análise do mundo. Éramos tão puros que comparávamos o sabor do toque entre lábios aos sabores de frutas exóticas. No caderno, a pergunta era: “qual o sabor do melhor beijo que você já deu?”. Talvez, muitos de nós, não havíamos sequer experimentado nem o beijo nem a fruta que reinava na lista, por isso a analogia do desejo enrustido. Antigamente, a fruta dos cafés de novela, da ilusão criada pelos filmes românticos da Sessão da Tarde, dos sonhos de qualquer criança que só comia banana e abacaxi, era o inatingível pêssego. Caro, inacessível e raro na Sacola Cheia, só visto na mesa dos ricaços. Pêssego era o sabor mais cobiçado na nossa iniciação sexual, sobretudo também, nas nossas carências alimentares.


O prazer do beijo era o desejo do pêssego. Ele simbolizava a materialização de nossas paixões, dos nossos sonhos íntimos, das conquistas que almejávamos. Era o clímax de toda história de amor. Um fruto de casca aveludada, de cores incomuns, de fragrância especial, de sabor adocicado. Era degustado calmamente, para que nenhum dos sentidos se perdesse naquele momento único. Os lábios, a saliva e os dentes se encontravam com a fruta silenciosamente. Os olhos fechados para que a memória gravasse o gesto, para que a língua captasse o sabor em sua intensidade. Pêssego era o anseio pela pessoa amada, o alcance do mais exótico dos prazeres. Beijar alguém pela primeira vez tinha esse gosto de fantasia. E o caderno sabia de tudo.

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