Atrás da
imponente cruz, no topo da Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, a
luz avermelhada do sol dava seus últimos acenos. O silêncio do crepúsculo era
quebrado pelo ritmo das ferraduras que se reuniam em frente à Mercearia Dona
Zulmira. Peões, fazendeiros, donas de casa, a meninada, os moradores da
Passagem sorriam em cumprimentos aos velhos conhecidos, animados para a
festança que logo transformaria a calma do distrito em acordes de violão, de
sanfona, de pandeiro. Nas rodas, a conversa tagarelava o preço do boi, a troca
injusta dos cavalos, o sumiço das galinhas lá na beira do ribeirão, as divisas
de terras entre os herdeiros da despedida do senhor fulano que era uma alma
boa. A fragrância de açúcar queimado estava na barraca de maçã do amor, nas
cores vivas do algodão-doce, no cricri de amendoim. Políticos rivais debatiam
ao lado de doses da cachaça do alambique do Zico. A festa era esperada e
comemorada, peculiar até para quem não conseguia deixar suas casas.
Detrás do balcão,
Zezé apaziguava os desafetos servindo cerveja, contando casos, dando risadas.
Aos amigos, distribuía tira-gostos quentinhos, diretos da panela, com o mesmo
sorriso cativante. Ponderado nas palavras, sereno nos gestos, agradava aos
Coelhos, aos Rodrigues, aos Cardosos, aos Azevedos. Todos com um grau de
parentesco, mas com suas pequenas diferenças familiares. Afinal, essas coisas
eram normais naquela rotina, que foi alterada pelo mestre de cerimônia que
testava o som do alto-falante. Ele convidava os solteiros para a dança
respeitosa com as moças casamenteiras.
Lá na fazenda,
um quilômetro distante da confusão, os filhos mais velhos já estavam de banho
tomado. Os mais novos cochilavam, dividindo o cobertor. A chaminé expulsava
muita fumaça, pois Marieta abastecia o fogão à lenha para preparar sua
especialidade à espera do marido. Francisco ainda apartava as vacas no pasto,
pensando na carne cozida que teria na janta. Arroz, feijão, couve, moranga,
estava quase tudo pronto. A matriarca dos Cardoso de Azevedo correu para o
chuveiro para aproveitar a água aquecida pelo calor dos gravetos que
esquentavam a serpentina de cobre, instalada artesanalmente na parede da
cozinha. Ela queria estar pronta para ouvir a cantoria que vinha lá de cima, do
centro do povoado. Apaixonada por música, sabia a letra de todas daquele
repertório. As crianças deveriam ficar em silêncio para que a voz do locutor
entrasse sem ruído pelos cômodos. Algo especial iria acontecer naquela noite.
O amplificador reproduziu o chiado do microfone
seguido da narração: “para você que gosta da dupla Pedro Bento e Zé da Estrada,
teremos um momento inesquecível. Romualdo Cardoso oferece com muito carinho a
música Paraguaia para sua querida irmã Marieta, que está nos ouvindo lá de sua
casa. Essa é uma das suas canções prediletas. Um abraço Marieta”. As primeiras
notas ecoaram. O coração da jovem estava emocionado com a homenagem. Ela cantou
junto: “paraguaia, amanhã eu vou parti/ Na despedida eu te peço pra não chorá/
Só peço a Deus pra na viagem eu ser feliz/ Que argum dia vortarei pra te
buscá.” Chorosa e pensativa, perdeu a segunda estrofe, porém entoou mais alto
os seguintes versos: “vou-me embora pra revê meu véio amigo/ Já não suporto a
saudade de meu pai/ Meu coração eu deixarei aqui contigo/ porque eu sei que não
esqueço nunca mais.”
As estrofes,
as palavras, as lembranças...O amor entre os irmãos está enaltecido na memória.
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