quinta-feira, 24 de março de 2016

SEM CAFÉ, NÃO DESCE



Na casa da Marieta, café era bebida sagrada. Duas garrafas pela manhã, duas para receber as visitas no fim do dia. Sempre havia quitanda e um tabuleiro de pão de queijo para assar em casos de emergência. A família era cafezeira. Uns bebiam o adoçado. Outros, por causa da saúde, optavam pelos adoçantes artificiais. E cada um possuía um ritual para saboreá-lo: na xícara apropriada, na maior, na esmaltada ou no copo lagoinha. Até as crianças eram “viciadas”. 

Quando Sonara chegou, a irmã caçula, a grande família mudou os hábitos, afinal ela era uma molequinha convivendo com a rotina dos adultos, ainda solteiros, e com os irmãos envolvidos em seus enlaces matrimoniais. Foi super protegida e cuidada com muito carinho pelos mais velhos, que sempre pegavam no pé da menina. Parecia implicância, mas era excesso de zelo. Ela encheu o ambiente com suas travessuras, suas perguntas iniciadas pelos inúmeros porquês, as descobertas na escola, as brincadeiras no bairro Santa Ângela, suas peripécias com o Chico, que era um avô-paizão. Amorosamente, ele a apelidou de Ximbica. A diversão dos dois era passear de charrete pela cidade, transformando aqueles pequenos momentos em aventuras memoráveis. Risadas altas quando o cavalo empacava. Sustos quando o quebra-molas jogava os passageiros para cima. 

Ximbiquinha era levada e sapeca, dava respostas surpreendentes e provocava gargalhadas em todos que a cercavam. Sempre atenta aos acontecimentos, aprendia a conviver com as rígidas regras familiares, aplicadas pela mãe, que educava os filhos seguindo uma linha dura, conversadora e com valores religiosos dominando suas determinações. Era Deus na conduta e o cinto para corrigir os erros. Certamente, a matriarca aplacava os ânimos daquele povaréu servindo sua deliciosa gastronomia, mas agitava os parentes com café forte. Lembre-se: eram quatro garrafas por dia. 

Certa vez, à mesa, o cafezinho cortando as conversas, a família discutindo as cenas da novela, as mães trocando informações sobre a chegada das fraldas descartáveis ao mercado, os genros preparando uma excursão para Uberaba, Sonara ouvia o debate. As irmãs mais velhas ofereceram uma xícara para a menina, que negou com a cabeça. “Não bebo café”. Espantados, todos ficaram sem reação. “Como assim, você não toma café?”. A negativa era um sacrilégio para aqueles que valorizavam a bebida como uma tradição. Ficaram indignados, no entanto respeitaram o gosto da caçula. 

O tempo seguia seu rumo, Bom Despacho estava crescendo, a estrada de ferro era substituída pelo asfalto. A Igreja da Matriz ganhava sua primeira reforma, as ruas da Cidade Sorriso ganhavam nomes de políticos famosos. Os sobrinhos de Sonara estavam nascendo, enquanto ela ainda era uma menina vestida de jardineira azul e blusa branca a caminho dos descobrimentos da vida escolar.  

Domingo à tarde, a filharada reunida após o almoço, os netos correndo pelo quintal, alguns empoleirados no pé de abacate, o cheiro de bolo de fubá perfumando a Rua Washington Luís, o pão de queijo fumegante saindo do forno, o pão sovado cheio de manteiga. Chegara a hora do lanche. Sonara comia com prazer. Para descer, dava goladas num copo cheio de café. Para facilitar, ainda molhava o pão na água preta. Os mais atentos acharam estranho a atitude dela. “Mas você não bebe café?”, perguntaram em uma só voz. A menina levantou os olhos, ajeitou os óculos, respondeu tranquilamente: “Não bebo quando é puro. Se tiver acompanhamento é outra história”. 

Parabéns pelo seu aniversário Sonara. Felicidade plena.

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